Nesta Casa. Nesta Capela



Nesta casa passei férias.
Nesta casa assisti às vindimas. Recordo o chiar dos carros puxados a bois. Recordo o pisar das uvas.
Nesta casa diverti-me nos festejos dos santos populares. Recordo-me dos colares de pinhões que a minha Mãe não me deixava comer.
Nesta casa tomei bons banhos no tanque. Grande como uma piscina, com água corrente vinda da mina da Serra da Gardunha.
Nesta casa montava o burro que me levava à quinta, sem precisar de saber conduzir.
Nesta casa ouvi as histórias das tropas francesas. Do animal em ouro maciço que enterraram na serra, para escapar aos saques e de que perderam o rastro. Acho que ainda hoje o procuram.
Nesta casa passei horas a andar de balouço, feito com duas cordas e uma tábua, preso, pelo meu Tio Manuel, a um grosso tronco de oliveira, mesmo perto da porta da cozinha que dava para o quintal.
Nesta casa buli com toda a traquitana velha existente no sótão, que me aguçava a imaginação e curiosidade. Desmanchei muitas teias de aranhas.
Nesta casa comi os melhores queijos (quanto melhor sabiam, pior cheiravam a chulé). Os melhores figos. As melhores uvas.
Nesta casa bebi leite de cabra.
Nesta casa fugia dos gansos. Corria atrás das galinhas. Fui mordida por um galo. Mimava os pintainhos.
Nesta casa vi pela primeira vez barro preto.
Nesta casa ouvi os lobos a uivarem em noites frias da época de Natal.
Nesta casa aprendi a sala de visitas, sempre coberta com lençóis e só destapada em ocasiões festivas ou na visita do Padre, pela Páscoa.
Nesta casa conheci os pífaros feitos com cana e de que nunca consegui extrair nenhum som melódico.
Nesta casa ouvia os sinos da Igreja tocarem. E a minha Avó a ensinar-me o significado dos vários toques. De alegria e de tristeza.
Nesta casa comia numa sala em que dois camaleões passeavam nas paredes para engolirem as moscas que eram mais que muitas. E picavam.
Nesta casa havia um cágado que limpava o cotão. Diziam-me. E, às vezes, hibernava. E o chão continuava limpo, esfregado com sabão amarelo e encerado com um aroma divinal.
Nesta casa toda a roupa cheirava a alfazema.
Nesta casa sentávamo-nos, à noite, na varanda, conversávamos e olhávamos aquele céu diferente que tinha miríades de estrelas, as constelações e a via láctea.
Nesta casa dormia muito depressa para levantar-me cedo e ir subir a serra, sempre de cajado na mão para ajudar a escalada.
Nesta casa acordava com o cantar dos galos e o ladrar dos cães da Serra da Estrela, que nos guardavam.
Nesta casa ouvia os grilos, as cigarras e os ralos, no fim das tardes quentes.
Nesta casa conheci os tabuleiros de bichos-da-seda e os casulos que faziam a linha com que se bordavam as colchas de Castelo Branco.
Nesta casa a luz das lâmpadas tremeluzia, os fios entrançados, cobertos a tecido, corriam pelas paredes e os interruptores eram em louça cor de pérola. Em louça eram também os manípulos das portas. As portas rangiam. O chão rangia.
Nesta casa vivia a minha avó e, antes dela, um meu tio, seu irmão, que não conheci, e que mandou construi-la, igual a outra que possuía em Belas.
Nesta capela existia, acho que ainda existe, uma única imagem, a de S. Sebastião, varado de setas, que me consternava porque não a entendia, porque não sabia ainda da ferocidade dos homens.
Nesta capela, capela de S. Sebastião, casaram os meus Pais.
Em mim está muito desta casa e desta capela, de que a minha avó era a guardadora da chave.
As fotografias foram tiradas pelo meu Pai.
A casa e a capela ficam em Vale de Prazeres, no Largo de São Sebastião.